terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Diversas vozes para Clarice

Documentário recria entrevistas que a escritora fez com personalidades

Ubiratan Brasil
A adoração de críticos e leitores podia sustentar a vaidade mas não a vida cotidiana de Clarice Lispector - como diversos outros escritores, ela se desdobrava em outra profissão, notadamente a de jornalista. No início, foram colaborações ocasionais, mas sua fama se estabeleceu no fim dos anos 1960, quando foi convidada a fazer entrevistas para a revista Manchete. E, como se tratava de Clarice, as perguntas, por vezes, eram mais reveladoras que as respostas.

Foi pensando nisso que uma sobrinha neta da autora, a cineasta Nicole Algranti, decidiu recriar aqueles encontros notáveis. O resultado é De Corpo Inteiro - Entrevistas, uma ficção com pitadas de documentário que será lançado em DVD hoje, a partir das 19h30, na Livraria Cultura Bourbon Shopping Pompeia. Trata-se da recriação de algumas das conversas que Clarice teve com personalidades e que estão agrupadas no livro Entrevistas (Rocco).

Na época, ela se dividia entre escrever o romance Uma Aprendizagem ou o Livro dos Prazeres e o livro infantil A Mulher Que Matou os Peixes, e ainda arrumava tempo para compor crônicas para o Jornal do Brasil. Mas, apesar do caráter de obrigação profissional, os encontros despontavam como momentos de prazer e descontração.

Um dos lances mais originais da documentarista foi o de convidar atores profissionais para encenar os instantes mais originais daquelas conversas. Assim, Louise Cardoso, no papel de Clarice, tem um encontro em um parque com Fernando Eiras, que vive Fernando Sabino. "Eles têm a mesma sintonia que Clarice tinha com Sabino", conta Nicole, que escolheu as atrizes com o pretexto de provocá-las a serem a escritora por um dia.

Além de Louise, a autora é também representada por Letícia Spiller, Beth Goulart, Silvia Buarque, Aracy Balabanian e outras. Já os entrevistados são revividos, além de Eiras, por Jofre Rodrigues (que recria de forma impagável seu pai, Nelson Rodrigues), Chico Diaz (Helio Pellegrino), Jayme Cunha (Jorge Amado) e Paulo Vespúcio (Carybé), entre outros.

"Não foi fácil para elas e nem para mim pois convivi com Clarice toda a minha infância", observa Nicole. "Na verdade, é uma tentativa de eu reencontrar a tia Clarice que perdi com sua morte em 1977, a tia, a mãe do Paulo e do Pedro, a mulher, a escritora, a misteriosa, a dona de casa, a jornalista, a que gostava de bichos como eu adoro. Como ela mesma disse: "Há muitos Rubens dentro de Rubem Braga, assim como há mil Clarices em mim"."

O resultado, de fato, é variado, com uma combinação de sotaques e entonações, uma vez que a escritora, além da musicalidade nordestina (fruto da época em que viveu em Recife), exibia ainda um defeito de pronúncia e não dizia direito o "r".

Mas ela surpreendia ao fazer perguntas mais abstratas, estranhas até: "Qual é a coisa mais importante do mundo?", "O que é o amor?" e "Qual é a coisa mais importante para uma pessoa como indivíduo?" eram suas favoritas.

Outra boa sacada do documentário foi a de convidar os entrevistados que estão vivos para repetir a experiência - dessa vez, com jornalistas no papel da escritora, todos repetindo as mesmas perguntas feitas por ela. Assim, Deolinda Vilhena, Arnaldo Bloch e Tania Bernucci são alguns dos entrevistadores de Elke Maravilha, Oscar Niemeyer, Tônia Carrero, Maria Bonomi, Nélida Piñon e Ferreira Gullar. "As respostas foram atualizadas, mas me impressionou que muitas foram as mesmas dadas a Clarice", conta Nicole. "Quando Deolinda perguntou a Tônia qual era coisa mais importante de sua vida, a atriz respondeu: "Manter-me viva e produtiva". Foi muito emocionante."

Problemas, evidentemente, não faltaram. O poeta Ferreira Gullar foi o primeiro entrevistado e, como o documentário foi filmado em HD, alta definição, corria-se o risco de o material sumir, da mesma forma que se perde misteriosamente um arquivo no computador. Assim, apesar de todo cuidado, um erro da produção fez com que todas as imagens captadas naquele dia desaparecessem.

"Muito sem graça, liguei para o Ferreira meses depois e pedi para repetir o encontro", conta Nicole, aliviada por contar com a compreensão do poeta, que aceitou.

O documentário exibe ainda uma cuidadosa trilha sonora, com música incidental feita por Roberto Frejat. O tema principal, Que o Deus Venha, tem letra da própria Clarice, retirado do livro Água Viva, e melodia de Cazuza e Frejat, coroada com uma bela interpretação de Adriana Calcanhotto.



Nenhum comentário:

Postar um comentário